Retirado do baú, aqui transcrevo uma história que dediquei à memória do meu pai há 10 anos atrás. Foi um texto com uma vida inesperadamente bonita, levando reconforto a inúmeras pessoas que perderam alguém importante. E acabou por ser publicada numa coletânea de textos no Brasil.
Numa altura em que tenho sabido de tantas partidas, recuperei este texto para o oferecer a uma amiga. Por recomendação dela, resolvi publica-lo neste espaço.
Porque vale sempre a pena acreditar naquilo que nos conforta.
COMO NASCEM OS ANJOS?
José abriu os olhos lentamente. Tinha consciência que dormira longas e profundas horas. Sentia-se relaxado, calmo, bem. Como novo.
– Éh pá! Já consigo sentar-me! A Alice vai ter uma surpresa. – sorriu e espreguiçou-se com força. Reparou que tudo nele funcionava na perfeição. Até o seu cabelo já não estava branco. Saltou imediatamente da cama e correu até à janela para ver o dia. Correu até à janela! Correu! José repetiu este movimento vezes sem conta até se convencer que realmente era capaz de o fazer.
No entanto, havia algo de estranho em todo aquele ambiente. Não reconheceu o hospital onde supostamente deveria estar. Do lado de fora, a paisagem parecia-lhe vaga e desfocada, mas dava para captar uma suave e reconfortante melodia.
– O que é que se está a passar? – murmurou José.
– Já acordaste? – Ouviu uma voz atrás de si. Não a reconhecia, mas não lhe era totalmente desconhecida. Para falar a verdade, nem sequer estava preocupado com isso. Ele só queria compreender o que estava a acontecer.
– Quem é você?
– Boa noite também para ti.
José virou o olhar, desconfiado, para a origem daquela voz e deu de caras com alguém muito parecido com ele há uns anos atrás. Que estranho tudo aquilo.
– C’a raio! – deixou escapar José. O estranho sorriu.
– Estás espantado, não é? É normal.
– Estou. Pois claro que estou!
O estranho limitou-se a sorrir com condescendência. Mas alguma coisa no olhar dele fez José estremecer.
– Porque é que estás a olhar para mim assim?
– Bem vindo, rapaz – disse o estranho, comovido, mas rapidamente se recompôs.
– Bom, estás preparado? . perguntou ele, alegremente.
– Estou preparado para quê?
– Para vires comigo, ora essa.
– Para ir contigo onde, pá? Quem és tu? A minha mulher sabe que estás aqui? Já sei, foi ela quem te mandou, não foi?
– Eh-eh. Tem calma. Uma pergunta de cada vez, se não te importas!
– Está bem. O que é que tu queres?
– Eu sou… para já só precisas saber que sou o teu Anjo da Guarda.
– Anjo da Guarda? O que é que estás para aí a dizer? Ah! Já percebi. És um padreca. Agora vocês falam assim, é?
– Padreca, eu? Vá lá, Zé. Ainda não percebeste?
– Onde é que está a minha mulher?
O Anjo sorriu. Houve um longo momento de silêncio. Zé estava muito confuso.
– Sentes-te bem? – perguntou o Anjo.
– Sei lá! – Mais do que assustado, José sentia-se curioso. – O que é que me aconteceu?
– Sentes-te bem? – repetiu o Anjo, com firmeza, ao mesmo tempo que observava José com olhar clínico.
– Sinto. Claro que sinto. Mas não percebo.
– Estás livre, Zé. Não percebes? Estás livre.
– Queres dizer que …? – José olhou o Anjo nos olhos. Não foi preciso dizer mais nada. – Quando é que foi?
– Hoje, às 4 da manhã. Enquanto dormias.
– Não senti nada.
– Eu sei. Decidimos que seria assim contigo.
– “Decidimos”?
– Sim. Na Comissão para os Assuntos das AET, presidida pelo Divino Criador.
– AET? Oh. Oh, oh! Que raio é isso das AET?
– Almas Especialmente Tocadas. São muito especiais e requerem um cuidado diferente.
– Queres dizer que eu sou uma … AET?- perguntou José, desconfiado. Não aguentou mais e desatou a rir – Eia gaita! Que importante! Então e que cuidados são esses, diz lá?
– As AET são mais sensíveis e por isso têm de ter uma preparação cuidada antes de … saberem certas coisas.
– Que “certas coisas”? – perguntou José, franzindo o sobrolho.
– Zé, ser AET é uma honra, mas o que lhe confere essa honra é as pessoas não saberem que esse título existe, até chegarem aqui.
– Eu quero lá saber de títulos. Quero é ver a minha família.
– Queres espreitá-los agora?
– Posso?
– Podes. Mas eles não te podem ver. Estás preparado?
– Vamos a isso – respondeu José.
Do lado de fora da janela, a paisagem mudou. Tudo passava muito rapidamente, por episódios. “Como um resumo de telenovela”, pensou José, intrigado. No entanto, era tudo bem real, José sentia-o.
– Estão todos tão tristes. E os meus netos? Tadinhos! – José sentia as lágrimas a deslizarem-lhe pela cara. – E eu que achava que seria um alívio verem-se livres de mim. Afinal, já não servia para nada.
– Não digas isso, Zé. Como vês, estás muito enganado. Tu foste e serás sempre muito importante para todos eles.
– Eu estou ótimo, Alice– gritou José para a mulher que não o podia ouvir – Óh teimosa! Já viste como já posso andar? Zé António, Tstá, Chalocos, Sofia d’a Gente! Não chorem! – José virou-se desesperado – Como é que eu lhes posso dizer?
– Eles agora não te conseguem ouvir. Mas, com o tempo, vão conseguir compreender. E tu vais ter oportunidade de os acompanhar sempre. É esse o privilégio de ser uma AET.
– Explica-me lá isso como deve ser.
– AET são as almas que tiverem uma conduta na terra virada para os outros, guiadas essencialmente por valores, como o amor, a amizade, a honestidade. A ternura. Para elas a passagem é feita com mais cuidado e normalmente sem sofrimento. São elas que têm o privilégio de decidirem qual a hora de partir, embora inconscientemente. Tu puseste a tua família sempre em primeiro lugar. Fizeste os teus erros, mas raramente pensaste em ti.
– A minha família era o mais importante para mim, lá isso é verdade, mas…
– Repara no teu funeral. Estás a ver a quantidade de pessoas? Tu marcaste muita gente, embora não o reconheças. Se não tivesses sido tão pessimista… E casmurro … Também, tiveste a quem sair.
– Como é que sabes?
O Anjo ignorou a pergunta de José.
– Mas aqui isso já não interessa. O que ficam são os valores que preenchem a alma. E é com eles que vais ajudar a tua família, porque todos eles precisam de ti.
– Como … como é que eu posso ajudá-los? Eles não me vêm.
– Mas sentem. Vais estar presente em cada conquista que eles fizerem. Nessa altura, tocarás nos seus corações. Sorrirás para eles e eles vão senti-lo. Brilharás no céu. Em cada momento de dúvida e incerteza, tu também estarás lá para os ajudar a tomar as decisões certas. Cada vez que estiverem tristes, vais lá estar na música que eles decidirem ouvir, nas lágrimas que quiserem soltar em tudo aquilo que fizerem para aliviar a sua dor. Tu vais lá estar e eles vão senti-lo. Não te espantes se falarem contigo. Podes responder-lhes. Eles não ouvem a tua voz, mas compreenderão a tua mensagem. Tu não morreste, Zé. Tu tornaste-te o Anjo da Guarda da tua família.
– Lá estão eles com as luzes todas acesas. E a porta! Ai, senhores. FECHEM A PORTA!
– Pára com isso. Esse problema já não é teu.
– Mas eles … pois é. Óh óh! E não é que fecharam mesmo a porta? E foi logo o mais novo!
O Anjo encolheu os ombros e riu. José também. E riu tanto como há muito tempo não ria. Ria com vontade, sentindo-se incrivelmente jovem. E ria por todas as vezes que não tinha rido. Ria porque queria rir. E riu por muito tempo ainda até se sentir completamente livre.
– Aprenderam! – disse José secando as lágrimas.
– Parece que sim. Tu às vezes eras bem chato, sabias?
– Pois era, taditos! – concordou José, com uma leve ponta de remorsos.
– Compreendeste tudo agora?
– Sim. Compreendi tudo. Já agora, queria fazer-te uma pergunta.
– Faz.
– Nesse sítio para onde me queres levar … Há sardinhadas?
– Sardinhadas? Bem, as almas não precisam desse tipo de alimentos, mas se fazes questão … Podemos pensar numa exceção. Não tens mais perguntas?
– Para já, acho que não.
– Então já podes saber… o resto.
– O quê?
José observou o Anjo com curiosidade. Este retribuiu o olhar com um sorriso. Foi então que o Anjo falou:
– São os pais que colocam os filhos no mundo. Quando partem primeiro, também devem ser eles a receber os filhos de volta.
– Quer dizer que …?
A porta abriu-se e uma mulher jovem e doce entrou. José sentiu as lágrimas a deslizarem-lhe pelo rosto. Correu para ela e abraçou-a. A sua mãe! O pai fez-lhe uma festa na cabeça, como fazia quando ele era pequeno.
– Como é que eu não o reconheci logo? – conseguiu perguntar José.
– Precisavas de tempo. Aqui o reconhecimento é feito pela alma. E eu mudei um bocado, não? Já cá estou há muito tempo, sabes?
– Vamos embora.- disse a mãe.- a Anita está à nossa espera.
– A Anita? – José sorriu, radiante – Há tanto tempo!
– Vamos? – repetiu a mãe.
José pegou na mão que ela lhe estendia. Com a outra, agarrou a mão do pai e partiram os três, assim, de mãos dadas, em direção ao seu novo destino. Não sabia se tinha idade para aquilo, nem sequer se tinha idade. Não sabia para onde ia. Não sabia nada nem queria saber. Estava cansado de querer saber sempre tudo. Agora, sentia que finalmente podia descansar.
Sorriu com ternura a cada elemento da sua família terrena que, do outro lado da janela, choravam a sua morte. Sentiu uma vontade enorme de os acarinhar, um por um. Mas não podia. Não com as suas mãos.
– Até logo, rapaziada. Não estejas triste, Alice. Eu vou estar sempre convosco. Não deixem de pensar em mim.
Por um momento, cada um por si, todos esboçaram um sorriso. E José percebeu que a sua missão começara.
que linnnnnnnnndddddddoooooooooooo
Olá Sofia, desde que fiz a Leitura da Aura que acompanho o blog. Não posso deixar de comentar este post, está muito bonito. Tive que o ler aos pouquinhos porque emocionei-me muito. Obrigada.
Beijinhos,
Marisa Cruz
Obrigada, Marisa. Beijinho para si e tudo de bom.
Obrigada Sofia, pela maravilhosa partilha deste magnífico texto.